Quando eu era adolescente, ficava intrigado com algumas coisas a respeito da criatividade. Por exemplo: como funcionaria a cabeça de um compositor, de um "hit-maker", de um maestro que compunha trilhas para filmes ou mesmo de um roteirista de novela/série? O motivo dessa intriga é porque eu comparava o quanto eu levava de tempo para "inventar" algo no teclado com o quanto de tempo esses caras levavam para produzir, ou ainda o quanto eles produziam em um determinado período de tempo.
Ao longo dos anos eu percebi que criatividade não era "inspiração" e sim, uma habilidade adquirida. Adquirida através de treino. Sim, isso mesmo - treino! Como qualquer outra atividade cerebral. E também para a qual se aplica a máxima: a prática leva à perfeição.
Fui percebendo que quanto eu mais me arriscava a criar, ainda que os resultados não fossem realmente bons, mais "calejado", mais experiente eu ia ficando. Ficava mais aguçado em perceber o que funcionava ou não.
É preciso qualificar essa tese – da composição ser uma habilidade possível de ser adquirida através de treino. Isso depende fortemente de se conseguir distinguir em termos práticos aquilo que realmente serve para uma composição estruturada e aquilo que não se aproveita. Se não, composição vira “número” e qualquer coisa que saia de um instrumento musical (voz incluso) pode vir a ser contada como tal.
Essa distinção depende de um senso crítico também possível de ser adquirido. Ela está intimamente ligada a percepção de cada um e a experiência do compositor enquanto OUVINTE DE MÚSICA. Quanto mais apurada é essa experiência, mais aguçado fica o senso crítico, permitindo selecionar e desenvolver ao máximo as boas ideias em direção de uma composição potencialmente boa. Entrarei em mais detalhes sobre isso – o quanto um bom compositor é, antes de tudo, um bom ouvinte, um bom apreciador de música.
Soma-se a este processo então, além da prática da composição em si (o arriscar-se em compor com regularidade) a necessidade de separar o “joio do trigo” dentro daquilo que se cria. O compositor deve buscar ser a primeira e mais crítica plateia de sua própria obra.
A maior escola que um músico pode ter é a própria música que já foi feita. As referências musicais são fundamentais para que alguém possa se arriscar com segurança nessa aventura. Seria o mesmo que trilhar um caminho já aberto por outros. Nada impede (e é até saudável) que novos caminhos sejam explorados; contudo, é uma pretensão enorme se achar capaz de fazer música 100% original e que não remeta a nada já feito (é preciso lembrar, com humildade, que a música já existe há muitos séculos). Para o músico e para o compositor, os ouvidos são tão ou mais importante que as mãos.
Adotar referências para compor faz parte de um processo de ouvir música de uma forma menos banal e bem mais analítica – é preciso buscar entender a estrutura da composição das suas referências e perceber os elementos que se alternam, como as ideias estão dispostas (repetições, pausas, ênfases, mudanças de clima, intenção, andamento) como os instrumentos interagem entre si e qual deles se sobressai em cada momento da música, dentre muitas outras coisas. Trata-se de uma audição muito atenta. E um passo natural para quem está começando é se apoiar fortemente em suas referências, como uma criança que está sendo ensinada pelo pai a andar de bicicleta.
Se apoiar em referências para criar é algo natural e intuitivo. Assim como uma criança aprende coisas do cotidiano observando como seus pais fazem, o desenvolvimento de uma ideia musical segue o mesmo caminho – através da observação. Quanto mais o músico se permite ouvir e observar como outros fazem, como outros criam, essa experiência como ouvinte vai permitir, gradualmente, que ele descubra os caminhos que levam a um resultado similar.
Nessa questão da observação vale ressaltar que não só a quantidade de audições atentas e analíticas (como já mencionei anteriormente) que importa mas também a variedade dessas audições. Se o músico é bitolado em Beatles e os tem como única referência de composição, por exemplo, a tendência (não é uma regra) é que suas composições se pareçam tanto com os Beatles que possam soar como imitação. Quando temos uma quantia grande de referências em nossa bagagem de ouvinte, os elementos que “emprestamos” de uma referência tendem a ficar tão diluídos e inidentificáveis que começam a constituir a própria assinatura musical do compositor. Ter uma massa grande de referências é o que vai ajudar um compositor a cunhar seu próprio “jeito” de compor, já que a natureza dessa mistura, no aspecto qualitativo e no quantitativo, é uma coisa ímpar e muito particular.
Além dessa amostra volumosa de referências, é preciso depurá-las através de um processo nada banal de audição de música, como já dito anteriormente. Depois de uma boa quilometragem como ouvinte é possível distinguir a construção das linhas vocais de Steve Winwood e de Rod Stewart, a forma como Jimmy Page e Jan Akkerman constroem seus solos de guitarra ou como Tony Williams e Jack DeJohnette tocam um 3/4 na bateria, dentre muitos outros exemplos.
Domando esse conhecimento oriundo de uma audição atenta, é cada vez mais possível enxergar os caminhos inexplorados de um estilo, de uma linguagem, de formas ainda não experimentadas ou de junções menos óbvias entre sonoridades. Nisso, raia no horizonte a possibilidade de criar uma assinatura própria que não passe pela “imitação”. É como entender aonde se quer chegar, sem precisar chegar no destino exatamente pelo mesmo caminho que sua referência trilhou.
Não significa que a imitação seja proibida. Muitos músicos famosos reconhecem que já adotaram esse caminho (como músicos, intérpretes ou compositores) ou até mesmo o experimentaram diretamente tocando covers por anos a fio antes de consolidarem seus próprios trabalhos. Mas nessa questão entra um aspecto interessante – nem todo mundo que pretende imitar outro alguém tem talento suficiente para tal. Então, aquilo que fica pelo caminho nessa tentativa de imitação pode ser justamente o que constrói a assinatura própria do músico/compositor. É algo construído pela soma do que se sabe com o que não se sabe.
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